Narcotráfico e Terrorismo são irmãos gémeos cada vez mais unidos pelo cordão umbilical do desespero.
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Percebe-se agora porque razão os EUA gastam tanto em “combate ao narcotráfico” e, aparentemente, tão poucos resultados obtêm. Aliás, esta realidade está em linha com o que se passa na saúde, em que, com 17.2% do PIB gastos em saúde ao longo de 2024, os EUA não são segundos para nenhum outro país, seja em números absolutos, seja na relação per capita. Também está absolutamente em linha com o que se passa nas políticas de segurança e policiamento público e privado (e os dados da OCDE), ou, ainda, em linha com outras áreas da Habitação à Educação, em que os EUA, liderando ou não liderando na despesa per capita, assim mesmo, se situam entre os mais elevados.
O que é comum a todas estas rúbricas? O que as caracteriza é que, em todas elas, os resultados obtidos ficam muito aquém dos investimentos realizados, o que demonstra, em última análise, que os gastos públicos e privados efetuados em políticas sociais se destinam sobretudo à alimentação do ávido mercado financeirizado que opera nesses sectores, e, em muito menor medida, à resolução dos problemas sociais reais.
Os EUA incorrem assim numa falácia que constitui uma verdadeira armadilha para as suas populações. Quase que poderíamos dizer que, quanto mais gastam, mais problemas têm e mais estes se agravam. No caso do narcotráfico e das consequências para a saúde pública, adiciona-se ainda outra dimensão, a do interesse estratégico geopolítico que o departamento de Estado tem na exploração, continuidade, alimentação e promoção desta problemática.
Entrecruzado com as decisões geopolíticas da Casa Branca e instrumento de intervenção além fronteiras e de projeção do poder estado-unidense, podemos dizer que a primeira grande vítima do enorme investimento público no “combate ao narcotráfico” é mesmo o povo norte-americano. A segunda, são os povos dos países que convivem com os cartéis ou são destinos do tráfico de droga, tantas vezes usado, nos EUA e fora deles, para financiar os esquemas subversivos e as revoluções coloridas de Washington. A Venezuela parece estar a descobrir que todos os navios que saem dos seus portos se destinam, segundo o Tio Sam, ao tráfico de droga, o que dá a Washington a justificação para impor um verdadeiro bloqueio naval a um país fustigado por sanções. Enquanto isso, o verdadeiro tráfico continua a fluir, como sempre, por entre a desorganizada e permissiva fronteira dos EUA.
Seja como for, Trump tem o mérito de deixar tudo muito claro e devemos reconhecer-lho de imediato. Sem governantes como Trump, iludidos pela máscara de comiseração em que assenta todo o discurso dos “direitos humanos”, seria muito mais difícil ao povo entender isto tudo. A atitude trumpista, face ao presidente Nicolas Maduro, seguida de imediato pelo assédio militar explícito, torna tudo muito fácil de perceber e só não o entenderá quem segue impávido na corrente narrativa dominante e alheio a todos os chamados de atenção vindos da margem, deixando-se seguir em direção à queda de água, que é como quem diz, ao obscurantismo.
Não é apenas a atitude em relação ao presidente Venezuelano que nos permite testemunhar o “acerto” do “investimento” norte americano em matéria de narcotráfico. Os presidentes da Colômbia ou do México também foram avisados. O aviso foi tão evidente que ressoou inclusivamente no Canadá, cuja fronteira Trump responsabiliza igualmente por deixar passar os componentes do Fentanil. Até Lula da Silva se sentiu avisado, ao ponto de, sem quê nem para quê, avisar que o Brasil também combate efusivamente o tráfico de drogas. Lula sabe que a distância entre uma acusação de apoio ao narcotráfico e uma classificação de “narcotraficante” é muito curta, tão curta que bastará uma condenação de Bolsonaro ou o impedimento de apropriação “liberal” de uma qualquer Petrobras.
É como se todos os Presidentes, de algum modo soberanistas, pudessem ser acusados de “narcotraficantes”, bastando para tal que o país que presidem tenha Petróleo, Lítio ou outro recurso valioso qualquer, considerado fundamental, e estes queiram assegurar que a exploração se faz sem taxas nem taxinhas para o Tio Sam.
A verdade é singela: os EUA são o país do mundo que mais recursos afeta ao “narcotráfico”, supostamente para o combater. Só em 2025, o orçamento federal prevê para as agências de controle de narcóticos, o National Drug Control Budget, a quantia dee $44,6 mil milhões de dólares. Esse montante destina-se a uma série de atividades, incluindo o Combate à oferta, destinando cerca de $3,3 mil milhões para a Drug Enforcement Administration (DEA), destes, sendo $1,2 bilhões especificamente para combater o tráfico de opióides. Os 44,6 mil milhões ainda incluem ações de interdição, nomeadamente fundos para o Departamento de Defesa (DoD) e outras agências, para intercetarem drogas nas fronteiras e no mar. Será daqui que sai o financiamento da “operação Venezuela”?.
De acordo com o Relatório Mundial das Drogas da ONU os dados não deixam mentir, os EUA são quem mais gasta, mas tal não impede este país de possuir mais de 70 milhões de americanos consumidores de drogas, um número absolutamente arrasador a todos os níveis, quando comparado com as outras nações. Ou seja, não obstante este astronómico investimento, o relatório aponta grandes deficiências à estratégia mundial e ao conjunto dos países considerados, dos quais, como se constata, os EUA constituem o maior “investidor”.
Com efeito, de acordo com o relatório anual da UNODOC (Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime), dos 519,30 milhões de dólares de financiamento, os EUA entram com cerca de 150 milhões de dólares, a quase totalidade do valor para a rúbrica “special purpose” (objetivos específicos), deixando pouco mais do que uns meros 458 mil dólares para os objetivos gerais da organização (general purpose).
Está bom de ver que os EUA financiam quando, e como lhes convém, enquadrando o financiamento nas suas estratégias geopolíticas de instrumentalização do narcotráfico. Daí que, apesar de todo o investimento, agências como a própria UNODOC ou a OCDE, dizem que as políticas internacionais de combate ao narcotráfico padecem dos seguintes problemas:
- Ênfase na Aplicação da Lei: A maior parte do financiamento para a política de drogas é gasta em policiamento e aplicação da lei. Essa verba cobre desde operações policiais de rotina à interdição de grandes carregamentos de drogas.
- Subfinanciamento da Prevenção e Tratamento: A prevenção e a redução de danos continuam a receber uma fatia desproporcionalmente menor do orçamento. Embora haja evidências de que o tratamento e a prevenção de qualidade possam ser mais econômicos a longo prazo, essa área permanece significativamente subfinanciada em comparação com as ações repressivas. Em alguns casos, o valor dedicado à prevenção é o mais baixo de todos.
Muito securitarismo, pouca prevenção. Então o que é que se passa? O que é que se esconde por detrás desta opção estratégica?
Em 2022, no Afeganistão, a área cultivada de papoila de ópio era de aproximadamente 233.000 hectares, resultando numa produção de 6.200 toneladas. O Afeganistão era o maior produtor de ópio do mundo, responsável por cerca de 80% do fornecimento mundial.
Já após a saída apressada dos EUA, em 2023, após a proibição levada a cabo pelo governo Taliban, a área cultivada de papoila caiu cerca de 95%, para apenas 10.800 hectares. Consequentemente, a produção de ópio subitamente caiu para cerca de 333 toneladas.
Embora existam narrativas que apontem para uma mudança no “modus operandi” Talibã, em que na qualidade de movimento insurgente, teria de se financiar com taxas sobre a produção e comercialização do ópio e, uma vez passando a governo, terá optado antes por inverter a política de forma diametral, esta lógica não parece condizer com a de um governo de um país com necessidades económicas brutais. Tal como na qualidade de insurgentes, quando confrontados com a brutal necessidade de recursos, não seria de crer que os Talibã subitamente se tornassem conscienciosos anti-traficantes, mas o contrário. Esta realidade parece mais apontar para outro tipo de causa.
Após os ataques de 11 de setembro e da a invasão do Afeganistão, a CIA e as Forças Especiais dos EUA aliaram-se a importantes senhores da guerra locais e milícias anti-Talibã. Muitos desses líderes eram figuras conhecidas no tráfico de drogas. Para manter a lealdade e o apoio dos aliados afegãos, os EUA terão ignorado, desvalorizado, ou até retirado vantagens, da sua ligação com o tráfico de ópio, que continuava a ser a principal fonte de rendimento do país. Esta é uma explicação. A outra, é a da priorização da segurança, em que os críticos da estratégia acusaram a CIA de colocar a sua missão de combate ao terrorismo acima da missão de controlo de narcóticos, permitindo que a produção de ópio atingisse níveis recorde durante a presença americana.
Estas alegações não são infundadas e foram tema de investigação por muitos historiadores e jornalistas, como é o caso de Alfred W. McCoy. Este historiador é uma das vozes mais proeminentes nestas acusações, nomeadamente as que surgem no seu livro “The Politics of Heroin: CIA Complicity in the Global Drug Trade”, em que documentou o suposto papel da Agência Central de Inteligência dos EUA, em várias operações clandestinas ao redor do mundo e que envolveram o tráfico de droga.
Também existem relatórios governamentais, tais como o do Government Accountability Office (GAO) e o do Inspetor-Geral do Departamento de Estado dos EUA, os quais também publicaram trabalhos em que, embora não acusem diretamente a CIA, reconhecem a dificuldade de equilibrar a segurança nacional com o controlo de narcóticos, e a complexa relação entre os aliados dos EUA e o tráfico de drogas.
Poderíamos aqui adicionar também o que foi a intervenção dos EUA na guerra do Afeganistão, que envolveu a URSS, e a forma como a CIA terá introduzido heroína no território soviético, quer para desmoralizar os jovens, quer para financiar os Mujahideen, de que Alfred W. McCoy também fala. Ou, ainda, o caso “Irão -Contras” e o uso da Cocaína pelos Contras para financiar a sua insurgência). Liderada pelo então senador John Kerry, esta comissão do Senado dos EUA concluiu que os Contras estavam ativamente envolvidos no tráfico de cocaína e que membros do governo dos EUA não só estavam cientes disso, como também “ignoraram” o problema. Uma vez mais, tal como no Afeganistão, a continuação e financiamento da guerra e a política geoestratégica de “segurança” prevaleceu sobre qualquer enunciado de combate ao narcotráfico.
Ora, quando analisamos, à luz da atualidade e sabendo de tudo isto, a forma como México, Venezuela, China ou Canadá estão a ser objeto de assédio nesta área, não podemos continuar a olhar para as forças de aplicação da lei norte-americana com os mesmos olhos.
Vejamos o caso da DEA. De acordo com a informação da DEA, esta agência tem mais de 90 escritórios em cerca de 70 países. Estes escritórios, conhecidos como “Country Offices” ou “Foreign Field Divisions”, servem como centros de cooperação com as agências de segurança locais.
A presença da DEA em países como o México, a Colômbia, a Venezuela e o Afeganistão é justificada segundo uma necessidade de coordenação direta com as autoridades nacionais para a partilha de informações e o planeamento de operações conjuntas. Supostamente, a DEA atua ativamente para localizar e prender indivíduos procurados nos EUA por crimes de narcotráfico, trabalhando em conjunto com as autoridades do país onde se encontram. Contudo, os casos de utilização agressiva desta organização, com o intuito de atingir objetivos geopolíticos também são conhecidos. Temos o Caso do General Manuel Noriega em que, em 1990, a DEA teve um papel direto na acusação do ex-líder do Panamá por narcotráfico. Após a invasão militar dos EUA ao Panamá, ele rendeu-se e foi para aí levado, onde foi julgado e condenado.
Surgiram também acusações do México relativas à tensão entre este país e a DEA, sobre aspetos como a soberania e as operações de inteligência. Tal tensão levou à aprovação de uma lei de 2021 que limita a atividade de agentes estrangeiros e a pressão do governo para que a DEA partilhe informações.
Temos também a expulsão da DEA da Venezuela em 2005 e a decisão do governo venezuelano de expulsar a agência foi um evento diplomático significativo, noticiado por veículos internacionais. O então presidente Hugo Chávez é apontado por expulsar a DEA, acusando-a de espionagem e de ajudar a “infiltrar o tráfico de drogas“.
Já nas Honduras, deu-se um tiroteio que envolveu agentes da DEA estalando uma controvérsia, reportada pelo The Washington Post, que detalha o tiroteio de 2012 e a forma como a operação da DEA gerou críticas e acusações de que os agentes estavam a operar fora dos parâmetros acordados É sabido que a DEA conduz operações secretas para recolher informações sobre as rotas de tráfico, as redes de fornecimento e os líderes de cartéis. Essas operações, muitas vezes, envolvem agentes a trabalhar disfarçados em países estrangeiros. A agência tem operado em países da América Latina e do Sudeste Asiático para desmantelar laboratórios de droga e confiscar precursores químicos. O seu envolvimento em operações na Colômbia, por exemplo, é considerado crucial na suposta “luta” contra a produção de cocaína.
Mas, se estão em todo o lado, porque razão é que, de acordo com as estatísticas a situação não para de se agravar? As estatísticas mais fiáveis são compiladas pelo Centro de Controlo e Prevenção de Doenças (CDC) e pelo Instituto Nacional sobre o Abuso de Drogas.
Vejamos os números das mortes por overdose e a sua evolução:
- 2019: Aproximadamente 70.630 mortes.
- 2020: Aproximadamente 91.799 mortes.
- 2021: Aproximadamente 106.699 mortes.
- 2022: Aproximadamente 109.800 mortes.
- 2023: Dados preliminares indicam um ligeiro declínio, com um total de cerca de 107.500 mortes.
Embora os opioides dominem as estatísticas de mortalidade, o envolvimento de outras drogas em overdoses fatais também aumentou, muitas vezes em combinação com o fentanil. Por exemplo, no caso das Metanfetaminas, as mortes por overdose envolvendo estimulantes psicomotores, como a metanfetamina, aumentaram de 16.167, em 2019, para 34.873, em 2022. Já no caso da cocaína, as mortes por overdose envolvendo também cresceram, de 15.883, em 2019, para 28.324, em 2022.
Estes números mostram que a crise de dependência nos EUA não é causada apenas por uma substância, mas trata-se, sim, de um cenário complexo e com contornos sistémicos. O que é extremamente paradoxal com os recursos investidos e a musculada presença territorial da DEA.
Podemos começar a concluir que a relação entre EUA e o combate ao narcotráfico é similar à de um velho conhecido nosso, o Terrorismo. Após o início da Guerra ao Terror de Bush Jr., não apenas o terrorismo aumentou, como aumentaram as intervenções dos EUA relacionadas com o terrorismo. Se, em relação ao narcotráfico, estabelecermos a mesma relação, também percebemos que, quanto mais dizem combater o tráfico de drogas, mais tráfico e consumo existem, neste caso, com uma diferença fundamental, o que torna isto tudo mais insidioso. Ao contrário do terrorismo, em que as maiores vítimas deste “combate” estão fora dos EUA, nomeadamente na Ásia Ocidental, Eurásia e África, no caso do narcotráfico, as vítimas ocorrem no seu próprio território.
Parece-me muito clara a razão pela qual os EUA não conseguem conter o crescimento dos seus problemas territoriais com as drogas, tal como não conseguem combater o terrorismo, a corrupção ou o crime violento. É muito difícil fazê-lo quando o mesmo Estado que subfinancia a prevenção e o tratamento, superfinancia a repressão e a utilização destas frentes como cavalos de Troia. É quase como um corpo que comete autofagia.
Se a isto adicionarmos as causas profundas do recurso às drogas, como a convivência numa sociedade cada vez mais narcisista, competitiva, individualista, violenta, provocadora de frustração e vício, tal como sucede com as causas do terrorismo, em ambos os casos a população mundial – e a dos EUA – são vítimas de um complexo militar industrial que usa o terrorismo e o narcotráfico como pretextos de ingerência externa, invasão e subversão.
Estando a hegemonia imperial da oligarquia monopolista estado-unidense intrinsecamente ligada à sua atividade subversiva externa, bem se percebe que bem pode o governo Federal gastar dinheiro no combate aos problemas, que mais não fará do que investir de forma quase mecânica na criação dos mesmos.
Trump deixa assim claro que narcotráfico e terrorismo são gémeos filhos da mesma mãe e pai: de uma oligarquia monopolista e imperialista, amassadas de forma bem profunda com um complexo militar industrial que torna tudo isto possível, se necessário à bruta.
Poderia continuar com inúmeras fontes em que EUA usaram tanto um como outro para financiar, justificar e esconder a sua atividade subversiva. Mas todos percebemos por aqui que, tal como o terrorismo contemporâneo, também o narcotráfico contemporâneo é causa e consequência de uma só política: a política hegemónica imperial. A Colômbia é uma das vitimas mais duradouras deste domínio, a Venezuela está prestes a experimentar a desacertada mão pesada do Tio Sam, nestas matérias. É razão para dizer que os cartéis reais podem ficar descansados: as suas drogas continuarão a matar nos EUA e os seus mercenários continuarão a aprender a manejar drones e outras tecnologias na Ucrânia. E que jeito podem vir a dar, quando se tratar de fazer o “combate” ao narcotráfico no México. Cartéis bem preparados poderão, um dia, justificar a ocupação territorial definitiva do 52.º estado. Tal como os “terroristas” justificaram a destruição da Síria, da Líbia, do Iraque e de muitos outros.
Narcotráfico e Terrorismo são, desta forma, irmãos gémeos cada vez mais unidos pelo cordão umbilical do desespero.